9.26.2006

Diálogo

- Espero que você realmente tenha algo importante pra me dizer...

- Eu ainda não abri minha boca... apenas deixe seus julgamentos para depois, me faça este favor.

- Sim, ok, mas veja, é difícil, quantos anos, diga-me, faz anos que você faz isso comigo?

- Não, não faz tanto tempo assim.

- Eu pensei que fossemos amigos.

- E somos.

- Não vejo como isso é possível. Até onde sei, entre amigos impera a sinceridade.

- Ora, você nem ao menos demonstrava um real interesse por ela. Eu via você sempre animado, saindo, bebendo e chegando cambaleante todas as noites. O telefone sempre tocava a noite, eram vozes femininas, eram casos, eram desejos... o que você queria que eu pensasse? Que tudo era brincadeira? Que no fundo você gostava dela e nutria esperanças de amor, de algo sério? Ora vamos. Nem o mais crente dos homens, o mais crédulo ser deste universo, ao sentir o aroma etílico de suas roupas, nem mesmo este ser acreditaria que em seu coração existia algum sentimento por ela.

- Sim, suas palavras são interessantes, e até penso agora que minhas atitudes estão bem distantes do usual de um coração apaixonado. Minhas ações, reprováveis, nojentas, viciosas, não importa, elas todas agora deixam de ser o que eram e tornam-se, em sua retórica, apenas argumentos. Sim, argumentos, álibis para que você encontre uma justificativa para sua traição. Ora vejamos, não é exatamente isso? Todos os meus passos são apenas elementos que justificam os seus passos. Todas as minhas faltas tornam a sua falta mais amena. No fndo, o que todos buscam é isso: erros nos outros para que os próprios se tornem mais suportáveis. Chamam a isso de aprendizado. Eu prefiro apenas enxergar um ritual humano tão tolo como qualquer outro - o que não o torna menos repugnante e, para mim, doloroso. Pois por mais que você tente não acreditar e busque em cada ação minha um indício de desprendimento, eu realmente gostava dela. Era um sentimento sincero, cheio de expectativas, não digo que existia amor, mas era algo bom e que me confortou até. Tudo o mais, as aventuras, os casos furtivos, o que era tudo aquilo? Apenas um passa-tempo prazeroso, e nem sequer uma gota de sentimento, de doce poesia.

- Talvez eu tenha cruzado uma linha que não deveria... mas você é como eu, um homem, e que deve responder a certas situações como um homem. E assim como eu, você sabe que o desejo fervilha, que os caprichos de Vênus curvam até as estátuas, e não há como ser indiferente aos caprichos da Natureza. Você sabe o quão ela é desejável; e uma mulher assim, você acha mesmo justo que seja dádiva de um homem só?

- Eu já sei aonde este discurso libertino pretende me levar, seu canalha. A Natureza escraviza a tudo com suas vontades e é essa escravidão indecente que torna tudo tão imundo nesta agonia de vida. Sim, pois é a Natureza que faz sucumbir até mesmo paredes de grosso metal. Veja como estamos agora. A confiança, o trabalho de anos de construção, agora é apenas um cisco, um empecialho, um nada frente ao Universo. Desigualdade absoluta, entre nós e a Natureza! Graças a ela, nada vale, nada importa, tudo é vão, falido e futil. Reina absoluto o acaso, o caos, o capricho, o desejo, a voracidade e a violência de uma Vontade terrível, Vontade de rosto multiforme e de astúcia que faria inveja a Ulisses. E agora, vejo você em minha frente, e não há sinceridade alguma em suas palavras (ou talvez haja justamente sinceridade em demasia), há apenas acasos, suposições e, como sempre, justificativas. Ah, viveríamos mais se não tivéssemos que nos justificar a cada minuto. Agora, ela é sua, fique com ela, desfrute-a como quiser, pois a mim, apenas me recolho desta história; com mágoas, sim, mas talvez mais sereno e menos sorridente para futuras brincadeiras.

2 comentários:

  1. Anônimo3:51 AM

    Lord! Demorou para criar algo assim e publicar seus textos. Merda que nao tenho tempo para le-los agora, mas fiquei instigado. Voce sabe que sou fa das antigas! Pelo que vi, alguns eu ja conhecia e ha tempos aguardavam a hora de sair da gaveta.

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  2. Hahah, a natureza é sempre uma ótima desculpa. A pré-determinação que nos liberta da culpa dos nossos atos.
    Estou adorando seus contos, temos que conversar mais. Voce me dá idéias...
    bjs!

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