9.12.2006

Telefone























O telefone tocou. Sabia: naquele horário ninguém a não ser ela. Somente ela. Julgava que até o som da campainha era diferente (obviamente não acreditaremos nisso, mas o fato é curioso e convém assinalar). Teve cansaço enorme, o monofone ganhava peso infinito, esforço demasiado para mim pensava.

É o segundo toque e, agora, ele tem certeza que é ela (o som da campainha denuncia). Mais mil toneladas somam-se a massa de um telefone multifreqüencial com capacidade de armazenar até dez números para discagem direta, basta pressionar um botão e pronto, a eletrônica faz maravilhas, puta coisa bacana (claro que ele nunca usou esta facilidade). Terceiro toque: talvez ela canse e desligue, talvez sinta que não quero atender, talvez isso, talvez aquilo, talvez... Suposições. Conjecturas. Um telefone pesado e um homem cheio de receios, uma mulher tentando falar com ele – não há eletrônica que os salve.

É necessário fazer algo, mas o quê? Ele poderia simplesmente retirar o fone da tomada e não pensar mais no assunto. Outra opção seria baixar o volume da campainha, aquele som horrível denunciando a existência dela. Até parece que o único som existente é o da campainha do telefone: não há mais sirenes de polícia, não há mais música, repórteres mudos na televisão, carros deslizando no asfalto como se fosse gelo, portas batendo e você nem percebe que um copo caiu no chão e virou caquinhos diminutos de vidro moído – só a campainha do telefone que toca, a campainha fazendo o som dela. Fora isso o silêncio é universal, faminto, impiedoso. Mas e se fosse outra pessoa? Todo esse consumir-se poderia ser em vão. Sim, bem poderia ser algum daqueles amigos que ligam sempre na hora errada. Começou a imaginar uma lista de prováveis nomes. Não pode deixar de sentir-se ridículo. Um homem de vinte e ... anos com medo de atender um telefone. Não havia dificuldade alguma, era só levantar o monofone e dizer alô. Se fosse algum amigo falaria sobre futilidades e após uns quinze minutos de conversa sentiria-se bem. Mas e se fosse realmente ela, como os indícios denunciam (a hora, o som da campainha)? Tudo tão característico. Impossível ser outra pessoa. A dúvida esfumaça-se, a certeza é total, ela grita e o grito é o som do quarto toque da campainha.

Fica gelado de medo. Puro e virginal medo. Criaturas horrendas escondidas debaixo da cama, no escuro, nas teclas engorduradas de um telefone multifreqüencial. Imagina-se atendendo o telefone: faces rubras, a voz rachando na garganta seca, vomitaria um alô qualquer, cheio de farpas e remendos, já visualizando o tédio da conversa.

Alô.

Oi... demorou pra atender... atrapalho, né?

Não, imagina, que isso, pode falar (cordialidade nunca faltou entre eles e assim era ministrada, em doses teatrais).

Apenas queria ouvir sua voz. Saber como você está. Os dias estão tristes. 

É, os meus também...

Sabia que se atendesse teria uma conversa como essa e nada, absolutamente nada, ficaria resolvido completamente. Alimentariam suas mágoas, vampirizariam-se, quem sabe até relembrar dias felizes - fotos bonitas sempre consolam. O telefone monolítico aumentaria de peso, tanta vontade de desligar, adeus, me esqueça, tome três doses de realidade por dia e vá embora, nós não somos mais um só, nós acabamos, passar bem, o próximo por favor: era comum ele imaginar diálogos como estes e prometer a si mesmo falar tudo – mesmo este “tudo” representando uma verdade que ele não queria admitir. Preparava então o discurso final começando com frieza e calculismo, terminando na aspereza e pouca simpatia; a insultava, fazia de meros flashes cotidianos epopéias de rancor; treinava gestos e pausas no discurso para garantir maior dramaticidade; incubava a guerrilha por dias a fio, compunha o texto nos detalhes; mas antes que o levante verborrágico se efetivasse, seu lado protetor eclipsava tais ímpetos, ficava manso, e pensava em poesia.

Quinto toque. Se conversas com ela não representavam a mínima novidade, os adornos feitos com retalhos do cotidiano o aborreciam muito mais (não consigo viver sem você, hoje almocei com o pessoal do trabalho, estou triste e só penso em seus beijos, assistiu ao jornal das oito, volte pra mim eu te amo tanto, greve de ônibus amanhã). Então fingia estar ouvindo: levava a alma para longe daqueles lamentos, respondendo com um sim ou não de acordo com a entonação da voz dela. Agia assim pois temia machucá-la, mas também não era capaz de dar-lhe atenção: já julgava fazer muito emprestando o ouvido e mais do que isso não suportaria. Poderia facilmente fazer aquela mulher muito feliz, a conhecia demais, até sabia os efeitos que cada palavra causava naquele espírito. Pensava neste poder com orgulho e desgosto: tinha nas mãos uma mulher sem dúvida especial, mas da qual já estava cansado. E não tinha forças para, simplesmente, dizer a verdade até o fim – seja lá o que isso significasse. Sempre a enxergou como um vasinho frágil que deveria ser cercado de cuidados e colherinhas na boca. Cobria-a de dengos e meiguices porque não conseguia imaginar outra forma de amar aquele passarinho; quis vê-la alçar vôo, ganhar os céus e, com sorrisos gordos, ir embora para longe dele com suas penugens já bem formadas. Mas só crescia a vontade do passarinho em ficar no ninho, pedindo mais brinquedos e doces que ele não queria mais dar. Então restou ficar ouvindo a campainha tocar, mais confuso do que poderia perceber, procurando uma explicação caída no chão da sua alma em fragmentos.

Um comentário:

  1. Anônimo8:30 AM

    nossa, le. que texto triste!
    como vc anda?
    beijo

    Regi

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