5.14.2007

E ao reler o Breviário, encontrei:


"... Até que tu vieste, Insônia, para sacudir minha carne e meu orgulho; tu que transformas o bruto juvenil, matizas teus instintos, avivas teus sonhos; tu que, em uma só noite, concedes mais saber que os dias consumados no repouso e, nas pálpebras doloridas, descobres um acontecimentos mais importante que as enfermidades sem nome ou os desastres do tempo! Tu me permitiste escutar o ronco da saúde, os humanos mergulhados no esquecimento sonoro, enquanto que minha solidão englobava a escuridão circumdante e tornava-se mais vasta do que ela. Tudo dormia, tudo dormia para sempre. Nenhuma aurora mais: velarei assim até o fim das eras: me esperarão então para pedir-me contas do espaço em branco dos meus sonhos... Cada noite era igual às outras, cada noite era eterna. E sentia-me solidário de todos os que não conseguem dormir, de todos esses irmãos desconhecidos. Como os viciosos e os fanáticos, eu tinha um segredo; como eles, havia constituído um clã, a quem tudo desculpar, tudo dar, tudo sacrificar: o clã dos insones. Atribuía gênio ao primeiro que chegasse com as pálpebras pesadas de fadiga, e não admirava nenhum espírito que conseguisse dormir, fosse ele glória do Estado, da Arte ou das Letras. Havia consagrado culto a um tirano que - para vingar-se de suas noites - proibira o repouso, castigara o esquecimento, decretara a desgraça e a febre. E foi então que apelei para a filosofia: mas não há idéia que console na obscuridade, não há sistema que resista às vigília. As análises da insônia desfazem as certezas. Cansado de tal destruição, chegava a dizer-me: nenhuma hesitação mais: dormir ou morrer... reconquistar o sono ou desaparecer... Mas tal reconquista não é fácil: quando nos aproximamos dela, percebemos o quanto estamos marcados pelas noites. Se amas, teu ímpeto estará corrompido para sempre; sairás de cada ´êxtase´ como de um pavor de delícias; aos olhares de tua vizinha excessivamente próxima mostrarás um rosto de criminoso; a seus arroubos sinceros responderás com as irritações da uma voluptuosidade envenenada; à sua inocência, com uma poesia de culpado, pois tudo se tornará para ti poesia, mas uma poesia da culpa... Idéias cristalinas, encadeamento feliz de pensamentos? Não pensarás mais: será uma irrupção, uma lava de conceitos vomitados, agressivos, saídos das entranhas castigos que a carne se inflige a si mesma, pois o espírito permanece vítima dos humores e fora de questão... Sofrerás por tudo, e desmesuradamente: as brisas te parecerão borrascas; as carícias, punhais; os sorrisos, bofetadas; as bagatelas, cataclismos. É que as vigílias podem cessar; mas sua luz perdura em ti: não se vê impunemente nas trevas, não se extrai delas ensinamento sem perigo; há olhos que nunca mais poderão aprender nada do sol, e almas doentes de noites das quais jamais se curarão...".

CIORAN, Emile. Breviário da Decomposição. Tradução de José Tomas Brun. Editora Rocco, São Paulo, 2000.

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