8.14.2007

Dívidas


Dormir o sono dos justos é uma expressão bíblica que remete ao repouso tranqüilo dos homens de bem. M. lia a Bíblia, mas não acreditava em Deus, e nos últimos tempos o seu sono era como um castigo pela impiedade do ateísmo.

E no leito M. revirava de um lado para o outro, e lá ele tinha a sua estação no inferno, mas sem espaço para qualquer tipo de poesia: cada sobressalto, cada virada para um novo lado da cama estreita era acompanhada da palavra “dívida”, que surgia em sua frente em letras garrafais, espécie de outdoor mental que se esfregava em seu pensamento tão logo fechava os olhos.

E as dívidas eram muitas, extensíssimas, e tão imensas pareciam, e tão insolúveis quando postas ao lado de sua pobreza, que muitas vezes na mente de M. os melhores caminhos seriam o crime e o suicídio. Impossível dormir sabendo que já não conseguia pagar os empréstimos que fez para pagar dívidas, dívidas que ele nem sabia ao certo como começaram: parece até que acordou um certo dia e elas já estavam lá, gordas e abundantes a zombar de sua cara. Estranho mesmo, pensava, e devemos dar um certo crédito para este homem, afinal nunca se dera grandes luxos consumistas, pode-se dizer até que anda meio mal vestido, sempre as mesmas camisas amassadas e o sapato por engraxar, mas enfim as cartas de cobrança não mentem, estavam ali empilhadas sobre a estante da sala a espera de uma solução, até lá veremos M. virando de um lado para outro na cama.

Já era tarde, e M. olhava o teto do quarto semi-iluminado. Ocupava-se em ouvir uma briga dos vizinhos do segundo andar, povo mais sem educação, deveriam deixar os outros dormirem, M. ainda guardava certos pudores, difícil encontrar isso em um homem que não janta decentemente há dois meses e que engana o estômago com chicletes, estou é me fudendo com uma úlcera, pensava rancoroso. E os gritos dos vizinhos se misturavam ao som dos carros, a rua Augusta nunca dorme, de dia são as lojas e escritórios e butiques, de noite são cinemas e prostitutas e cafetões, e sempre cheia de carros, M. nunca teve um carro, nem sabia o nome de alguns, mas naquele momento todos os carros do mundo lhe pareciam coisas estúpidas e barulhentas, que o leitor veja nisso uma certa porção de inveja.

Como pagarei tudo isso, falava de si para si, mas é claro que era apenas uma pergunta sem resposta, assim como tantas outras, será que Deus existe, como começou o Universo, existe vida em Marte, M. virava novamente na cama e o seu drama pessoal oferecia ao mundo mais uma pergunta insolúvel. Já tinha vendido o computador, a televisão, o aparelho de DVD e alguns CDs, uma migalha após outra, mas não queria vender o seu som, afinal fora presente de uma namorada e sem música se sentiria ainda mais só, já que nem parentes próximos ele tinha e os distantes nem sabiam aonde ele estava. Sem música a vida seria um erro, essa frase não era dele mas M. a fizera sua, um erro, algo grotesco, pensava, e assim repetia toda vez que mirava o presente da ex-namorada e pensava em vendê-lo, veja até onde vai o desespero dos homens. E quando M. percebia que a noite já estava perdida, que nenhuma tentativa de adormecer seria mais válida e que o melhor seria acalmar os pensamentos, ele escolhia um CD qualquer, colocava no aparelho e ouvia baixinho, lendo as letras, às vezes cantarolando, às vezes com olhos vagos e cheios de tédio. Assim, algumas vezes, o sono até chegava a acontecer, e um pouco de repouso noturno lhe era concedido. Era como se as notas e acordes afugentassem as cifras, os juros, as cartas de cobrança, o nome sujo no SPC, a fome mascarada com chicletes, a vida que cheirava miséria. E M. fechava os olhos, imaginava as contas pagas, os credores felizes, a sua dignidade de homem renascendo. Um erro, uma vida sem música é um erro, pensava, e assim voltava para a cama, já satisfeito, já sem brigas de vizinho, já sem carros na rua para incomodar, apenas M. e sua cama mal cheirosa onde o aguardava um sono que, mesmo não sendo dos justos, lhe daria repouso antes de seu tormento retornar.

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